sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Mulher ao Livro - Rui Werneck



(Esta crônica do participante Rui Werneck ganhou o primeiro lugar no VII Concurso Ruben Braga da Academia Cachoeirense de Letras, Para o escritor receber o prêmio, obrigam-no a ir a Cachoeiro do Itapemirim, mas o dinheiro respectivo não cobre a passagem até ao Espírito Santo e este não o levará até ao escritor.)

         MULHER AO LIVRO
                                                                 D’après mestre Rubem Braga
         De minha varanda não vejo, entre edifícios altos e telhados, o mar. O dia está ensolarado e convidativo, mas o mar mora longe, em outra cidade. Vejo só a rua cheia de carros, ônibus, motos, caminhões — passam rapidamente, dobram esquinas, buzinam, freiam, aceleram, atropelam-se. Não sossegam. O som dos motores vem de longe, cresce e decresce — são ondas sonoras cíclicas, pesadas, que estremecem o ar, entram pelos ouvidos e embaralham o espírito.
         Porém, percebo um ponto calmo — uma mulher acomodada na poltrona, em seu apartamento, no outro lado da rua. Não a conheço — mas quem conhece ao menos o vizinho no mesmo edifício? Ela tem um livro nas mãos e enfrenta a leitura com um distanciamento seguro da zoeira dos veículos. A janela está fechada e o ambiente tem boa iluminação natural. Não sei se escuta música — da qual certamente está alheia. A leitura faz com que ela se ausente do mundo real. Transportou-a para algum reino perdido no tempo, alguma cidade distante e para enredos de amor, aventura e magia. Nem percebe que a observo. Com energia dos músculos contida — vira as páginas com leves movimentos do braço e dos dedos — ela exercita apenas a imaginação. Não quer acordar da viagem tão delicada e sacudir os personagens, truncando a história. Por algum tempo, eu também me isolo da balbúrdia da rua e acompanho aquela abnegada leitora — sonho de todos os escritores.
         Somente durante a minha observação, ela virou dez páginas. Seria um recorde? Digo isso sem malícia. Apenas comparo com a pressa desmesurada dos leitores mais jovens — para eles, uma página é um mar de provações e um livro, oceano eternamente tormentoso. A mulher parece ter todo tempo do mundo — livrou-se das tarefas do dia e sentou para ler um livro. Absorvida pela leitura, ela sabe que a vida lá fora pode esperar. Tem controle do momento e das futuras movimentações — filho chegando da escola, marido chegando do trabalho. Quem sabe o quê? Não importa. Importa é que ela conseguiu conquistar um tempo precioso, só dela, para ler um livro. E ela, por sua entrega, dentro do meu sincero julgamento, faz por merecer.
         Daqui da varanda observo e, sem que ela jamais venha a saber, uso a importante conquista para meu proveito — escrevendo — e para proveito de alguma outra alma leve que venha a alcançar a sabedoria de não se render ao infernal barulho das ondas sonoras da superfície — e prefira a calma das profundezas do espírito.
         Ela segue bravamente em frente. Lutando silenciosamente contra a maré das coisas mundanas à sua volta. Talvez se levante daqui a pouco, por obra de um telefonema, uma visita ou outra importunação qualquer. Torço por ela no seu silêncio — que não venha a ser quebrado por nada. Até que ela, por si mesma, desperte — sem pressões — do sonho bom. Volto a mim e às máquinas que correm desvairadas — o mundo delas é sempre noutro lugar! Deixo a visão da mulher lendo como um quadro que não cairá nunca da parede da memória — mesmo sob os escombros de um barulhento mundo de motores.

         Rui Werneck de Capistrano

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